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Entre o pódio e a vida real: saúde mental e os bastidores da alta performance esportiva

Quando vi a Manu Cit completar o Ironman 70.3 do Rio de Janeiro em primeiro lugar na sua categoria, com tão pouco tempo de preparação, fiquei intrigada. Não apenas pelo resultado, mas pelo que ele simboliza. Cada conquista no esporte traz uma narrativa muito maior: de esforço, escolhas, privilégios e, acima de tudo, de como lidamos com a saúde mental em tempos de performance constante.


Manu Cit no Ironman 70.3 Rio de Janeiro
Manu Cit no Ironman 70.3 Rio de Janeiro

Manu começou no Instagram de forma quase despretensiosa, compartilhando treinos, estudos de medicina, refeições saudáveis, viagens. Uma rotina que parecia sempre organizada e produtiva, e que rapidamente conquistou milhares de seguidores. Com o tempo, esse estilo de vida virou negócio — marca própria, academia, parcerias. Mas a grande virada aconteceu quando, mesmo após correr a maratona de Berlim lesionada, decidiu se preparar para um Ironman 70.3 sem nunca ter feito triathlon antes.



O resultado foi impressionante e a forma como ela compartilhou cada etapa atraiu toda a geração z para o esporte. Tanto que as inscrições para a próxima edição da prova que será em agosto de 2026 se esgotaram em menos de duas horas. Isso mostra o poder da inspiração, mas também revela um lado delicado: muita gente passou a desejar viver algo parecido sem ter clareza do que significa, de fato, treinar para isso. Porque o esporte não é feito de atalhos — é construção lenta, cheia de camadas, ajustes, frustrações. Quando alguém tenta pular etapas, surgem as lesões, a desistência, a comparação sufocante.


Esse movimento não é novo. A psicóloga e psicanalista Mariana Hollweg Dias escreveu que o esporte de alto rendimento reflete a lógica da nossa época: nunca basta, sempre falta algo. O treino de hoje já vira cobrança para amanhã, a meta cumprida abre espaço para outra maior. Esse “ainda falta” se infiltra não só no esporte, mas também no trabalho, no corpo, na vida. O filósofo Byung-Chul Han chama isso de sociedade do desempenho. Ele explica que já não precisamos de alguém nos cobrando de fora; nós mesmos nos exploramos. O “eu posso” se transformou em “eu devo”. Parece libertador, mas é uma nova prisão: nunca é suficiente.


Na minha prática clínica e também como triatleta amadora há mais de 10 anos, vejo os efeitos dessa lógica diariamente. Atletas que perderam o prazer pelo treino porque tudo virou obrigação. Pessoas que se lesionaram gravemente por não respeitar os sinais do corpo. Eu mesma precisei aprender, com tempo e com dor, que descanso não é fraqueza. Descanso também é treino. Mas descanso verdadeiro, que não precisa ser otimizado, medido ou postado. Pausa é pausa — é nesse espaço que o corpo se reconstrói e a mente encontra fôlego.


Nesse sentido, considero importante o movimento da própria Manu, que passou a mostrar estrategicamente o lado B da história: dias sem treino, dores, impacto do ciclo menstrual, momentos de diversão fora do esporte. Isso traz humanidade à narrativa e quebra a ilusão da linha reta. Ainda assim, as críticas continuam: ao corpo, às escolhas, até à origem dela. O que reforça o quanto a pressão sobre mulheres no esporte é cruel. Mesmo quem parece “encaixar” nos padrões nunca escapa do julgamento.


Também é preciso lembrar que nem todo mundo parte do mesmo lugar. Ter estrutura, tempo, suporte financeiro e emocional faz diferença enorme em qualquer jornada esportiva. A ideia de que “basta querer” ignora desigualdades reais. Reconhecer isso não diminui conquistas, mas ajuda a colocar em perspectiva o que vemos nas redes e a não cair na armadilha da comparação injusta.


E é aí que entra a reflexão mais necessária: as redes sociais ampliam tanto a inspiração quanto a cobrança. O desafio é aprender a filtrar. Perguntar: isso me inspira ou me esgota? Me motiva ou me aprisiona? A conquista da Manu é dela. A nossa pode ser completamente diferente. Pode ser correr 5km sem dor, voltar a sentir prazer no treino, aprender a descansar sem culpa.


No fim, o pódio é só um detalhe. O verdadeiro troféu é viver o esporte de forma sustentável — com corpo, mente e relações preservadas. E isso, eu garanto, vale mais do que qualquer medalha.



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A preparação mental é parte essencial da performance sustentável. Se você deseja treinar com mais equilíbrio, lidar melhor com a pressão e manter a motivação sem abrir mão da saúde mental, agende uma consulta comigo.



 
 
 

1 comentário


Paula Calazans
Paula Calazans
20 de ago.

Oi professora, gostaria de te agradecer pelas reflexões na alta performance. Fico pensando na alienação excessiva ao olhar do outro e a falta de reflexão como potenciadores de sintomas. Falam muito bem da manu cit, como se fosse uma ídola da minha geração, mas ninguém para para pensar no “lado negro da força “ do que estamos escolhendo quando essa figura se torna o ideal…. Correr lesionado? Performar a qualquer custo? Como se tivesse uma constante ameaça de ser rechaçado se não seguir o script da rotina perfeita, da performance saudável e se ser melhor que os outros, o máximo possível….

Assinado: Paula Calazans Pittol

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    ©2021 por Paula Figueira Psicanalista e Psicóloga Esportiva CRP-ES 16/1594

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