O que resta ao atleta quando a carreira esportiva chega ao fim?
- Paula Lampé Figueira
- 2 de out.
- 5 min de leitura

Quero começar com uma questão simples, mas que abre um buraco enorme: o que resta ao atleta quando a carreira esportiva chega ao fim?
Na Psicologia do Esporte, chamamos esse momento de transição de carreira. E não é qualquer transição: é uma das mais delicadas passagens da vida de um atleta. Porque não se trata apenas de parar de competir… se trata de reorganizar toda a vida em diferentes dimensões — a financeira, a social, a psicológica, a ocupacional.
Pense comigo: enquanto a maioria das pessoas chega ao auge de suas carreiras por volta dos 40, 50 anos, os atletas muitas vezes estão encerrando a sua trajetória aos 30, às vezes até antes. Afinal, se trabalhar é viver, parar de trabalhar é encarar a finitude. Imagine o impacto quando isso ocorre tão cedo.
E por que esse fim acontece? Pode ser por lesões, por queda natural no rendimento, por falta de oportunidade, ou simplesmente pela perda de interesse. Mas, diferentemente de outras profissões, aqui muitas vezes a decisão não parte do sujeito. A carreira pode acabar de forma súbita, sem que ele tenha se preparado. Quando isso acontece, os efeitos negativos se intensificam: depressão, abuso de substâncias, até risco de suicídio.
Em alguns esportes, como a ginástica rítmica, a aposentadoria chega por volta dos 20 anos. Vejam como esse corte é abrupto: duas Olimpíadas, e já é hora de encerrar.
É verdade que, para alguns, a saída pode ser menos sofrida. Quando o atleta cumpre suas metas, quando escolhe o momento certo, quando tem estudos ou outro projeto paralelo. Mas convenhamos: isso é raro. A regra é que a aposentadoria seja vivida como ruptura, e não como escolha.
Identidade do atleta
A psicóloga Kátia Rubio traz um termo interessante: em vez de ex-atleta, ela prefere falar em pós-atleta. Por quê? Porque mesmo depois do fim, o sujeito não deixa de carregar essa marca. Ele é reconhecido socialmente a partir desse lugar de atleta.
E aqui está um dos grandes desafios. Durante anos, a identidade do sujeito é construída em torno do esporte. A rotina é de treinos, viagens, competições. O convívio é quase exclusivo com companheiros de equipe e comissão técnica. Quando tudo isso se rompe, o atleta descobre que pouca gente fora desse meio compreende o que significa perder essa identidade.
E há ainda o destreinamento — a perda fisiológica e técnica natural quando se interrompem os treinos de alto rendimento. Do ponto de vista médico, é esperado. Mas, do ponto de vista subjetivo, é vivido como uma ferida narcísica. Freud descreve o amor-próprio como sustentado em tudo aquilo que temos ou conquistamos. Para o atleta, o corpo performático é parte desse amor-próprio. Quando esse corpo se transforma, é como se perdesse uma parte de si.
E aqui cabe uma pergunta: se toda a vida do atleta foi investida nesse único objeto chamado esporte, o que resta quando esse objeto se perde? Freud dizia que um negociante cauteloso não investe todo o capital em uma só coisa. Mas será que o atleta pode escolher? Na maior parte das vezes, não. Por questões sociais, econômicas, ou pela própria lógica do rendimento, ele aposta tudo no esporte.
O luto
É aqui que a psicanálise nos oferece uma chave preciosa. Freud, em Luto e Melancolia (1917), descreve o luto como a reação diante da perda de um objeto amado. Esse objeto pode ser uma pessoa, mas também pode ser uma abstração: a pátria, a liberdade, ou — no caso do atleta — o próprio esporte.
O luto, diz Freud, se manifesta como abatimento, retraimento, perda de interesse pelo mundo externo. E não consideramos isso patológico porque sabemos que faz parte de um trabalho psíquico. É como se o sujeito precisasse, pouco a pouco, retirar sua libido daquele objeto que já não existe, para poder investir em novos caminhos.
O problema é quando esse processo não acontece. Aí entramos na melancolia. Freud diz: “na melancolia, a sombra do objeto caiu sobre o Eu”. Ou seja, em vez de reconhecer a perda, o sujeito se identifica com ela. E a crítica, que antes era dirigida ao mundo, volta-se contra si mesmo. É isso que vemos em tantos atletas que, após o fim da carreira, caem em quadros depressivos severos.
E o que complica ainda mais: no esporte, não há espaço para o tempo do luto. A lógica é sempre a da superação, da adaptação rápida, do “seguir em frente”. O sofrimento é tratado como mais um obstáculo a ser vencido, como se pudesse ser administrado com técnicas ou remédios. O sujeito, nessa lógica, permanece silenciado.
Três destinos possíveis
Depois dessa base teórica, quero trazer três histórias que ajudam a ver como esses conceitos se encarnam na vida concreta dos atletas. Duas são casos clínicos cujo sigilo foi preservado e a outra é um caso público, cujos dados podem ser encontrados na mídia.
Ainda antes dos 30 anos, um atleta teve a carreira interrompida por uma lesão grave. Não havia concluído os estudos e sua identidade estava inteiramente colada ao corpo que performava. O fim abrupto trouxe depressão, isolamento e abuso de álcool. Nesse caso, o luto não pôde ser elaborado: a sombra da carreira perdida caiu sobre o eu, como descreveu Freud. É o risco da melancolia.
Outra atleta que acompanho, ainda no início da sua carreira, concilia treinos exaustivos com faculdade e estágio. Desde cedo, encontrou espaço para falar de quem é para além do esporte. Esse trabalho clínico permitiu que ela investisse em outros papéis e objetos, sem reduzir toda sua identidade à performance. Aqui vemos um terceiro destino: a prevenção. A construção de recursos antes mesmo da aposentadoria abre caminho para que o luto, quando chegar, seja menos devastador.
Trago aqui também um caso público, o da pentacampeã mundial de bodyboard e decacampeã brasileira, Neymara Carvalho, com 30 anos de carreira no circuito mundial. No auge, quando ainda vencia campeonatos, criou o Instituto Neymara Carvalho, voltado para transformar a vida de crianças e adolescentes em vulnerabilidade social através do bodyboard. Hoje, aos 50 anos, está fazendo a sua transição de carreira gradualmente, segue competindo e conquistando pódios junto de sua filha, administrando o Instituto e organizando a Wahine Bodyboard Pro, etapa exclusivamente feminina do circuito mundial. Aqui vemos outro destino: o luto se faz, mas a libido é reinvestida em outros projetos, transformando a carreira em legado.

Esses três casos nos mostram diferentes formas de atravessar a transição da carreira:
a melancolia, quando a perda do esporte vira empobrecimento do eu;
a prevenção, quando desde cedo o atleta pode falar de si para além do esporte.
e a reinvenção, quando o atleta encontra novos caminhos para além da alta performance.
O fim da carreira esportiva, portanto, não é apenas um evento prático ou financeiro. É uma experiência de perda profunda, atravessada por feridas narcísicas e por luto. E é justamente por isso que a psicanálise pode oferecer algo fundamental: um espaço de fala. Um lugar onde o atleta possa reconhecer o que se perdeu, elaborar essa perda, e, quem sabe, inventar novas formas de investimento para o desejo.
Se no esporte a palavra de ordem é sempre adaptar e superar, talvez a contribuição da psicanálise seja justamente permitir o diferente: parar um pouco, falar, elaborar. Porque só assim é possível inventar um depois.
Referências
FREUD, S. Luto e Melancolia (1917). In: Obras Completas, vol. 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). In: Obras Completas, vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
RUBIO, K. O atleta e o mito do herói. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
ANJOS, Fábio Menezes dos. O mal-estar no esporte: um olhar psicanalítico. Curitiba: 2022.
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