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O que tem levado tantas pessoas a fazer triatlo hoje?



No último final de semana, larguei em mais uma edição do Capixaba de Ferro. Já fiz essa prova várias vezes, mas esse ano ela estava diferente: bateu recorde de inscritos! Foram mais de 800 atletas no start list, o maior número da história do evento. Isso me fez pensar: o que tem levado tanta gente a entrar no triatlo?


Quando comecei no esporte, em 2014, fui respeitando cada etapa. Fiz provas curtas, aprendi a lidar com as transições, entendi o que era nadar no mar no meio de um monte de gente se debatendo, testei minha resistência em distâncias progressivamente maiores. Somente depois de cinco anos encarei um Ironman, e ainda assim acho que fui antes da hora. Nesse tempo, o triatlo se tornou mais do que um esporte para mim. Ele passou a ser a estrutura que organiza a minha rotina – e, de certa forma, minha vida. São treinos de natação, bike, corrida, fortalecimento. Para dar conta disso tudo sem enlouquecer, é preciso encaixar bem as peças: descansar, trabalhar, estudar, estar com a família, sair com amigos. Dá trabalho, mas sempre levei isso com prazer.


Mas o que me intriga é perceber que nem todo mundo encara o esporte dessa forma. Nos últimos anos, vi cada vez mais pessoas entrando no triatlo já querendo fazer um Ironman. Muita gente chega com sede ao pote, sem antes experimentar se gosta do processo. Parece que o triatlo reverbera a lógica da alta performance que marca os nossos tempos. Temos que performar em tudo, até nos nossos hobbies. 


Talvez seja por isso que o triatlo tem se tornado um esporte tão comum no mundo corporativo, que  admira disciplina, resiliência, capacidade de planejamento - o triatlo é a materialização disso tudo. Treinar para uma prova exige gerenciamento de tempo, lidar com fadiga, administrar frustrações, seguir um plano. De certa forma, o executivo que encara um Ironman não está apenas praticando um esporte, ele está reafirmando um modo de vida: o da superação incessante, da resistência como um valor quase moral. Mais do que um desafio físico, o triatlo se tornou um novo selo de status. Em um mundo em que mostrar produtividade virou quase uma obrigação, a medalha de finisher funciona como um troféu de eficiência.


E até onde as pessoas estão dispostas a ir para isso? Vejo, com preocupação, atletas que burlam regulamentos, cortam caminho, pegam vácuo onde não podem, usam substâncias proibidas para melhorar o desempenho. Para quê? Para postar um tempo menor? Para impressionar os outros? O esporte, que deveria ser um espaço de autoconhecimento e superação pessoal, se transforma em uma busca por validação a qualquer custo. Sempre joguei limpo, sempre respeitei as regras e a ética do esporte. Mas confesso que me pergunto: o que leva alguém a trapacear em algo que, em teoria, deveria ser para sua própria satisfação pessoal? O que faz um atleta querer vencer sem honra? Se o triatlo reflete nossa sociedade, será que estamos vivendo um tempo onde a foto na linha de chegada vale mais do que o caminho percorrido?


Byung-Chul Han, em A Sociedade do Cansaço, fala sobre como a lógica da produtividade se expandiu para todas as áreas da vida. Não basta ser um profissional competente; agora é preciso ser um atleta de resistência, um investidor de sucesso, um leitor voraz, alguém que medita, dorme bem, come saudável e ainda tem tempo para postar tudo isso nas redes sociais. O descanso, que deveria ser um direito, virou um luxo. Mais do que isso, tornou-se um problema: quem descansa sente culpa, como se estivesse desperdiçando um tempo que poderia ser melhor aproveitado para otimizar alguma coisa. O sujeito contemporâneo se explora até a exaustão e, pior, acredita que isso é liberdade.


E é nesse ponto que entra outra questão: será que, sem Instagram, tantas pessoas estariam no triatlo hoje? A prova não basta, é preciso exibir. O treino não basta, é preciso compartilhar. Se não postar, será que aconteceu? Parece que o esporte, para muitos, deixou de ser uma experiência vivida para se tornar uma narrativa performática, um espetáculo para a audiência. O que sustenta essa lógica? Que desejo é esse? Se não houvesse plateia, será que a motivação continuaria? A alta performance virou mais um objeto de consumo, e a linha entre o prazer genuíno e a necessidade de reconhecimento externo fica cada vez mais borrada.


Freud talvez já tenha antecipado um pouco disso ao falar sobre o narcisismo. No seu texto Introdução ao Narcisismo, ele diferencia o narcisismo primário – aquele estágio inicial da infância em que toda a libido está investida no próprio eu – do narcisismo secundário, quando o indivíduo, depois de estabelecer vínculos com o mundo, redireciona essa energia de volta para si. No triatlo, esse movimento é visível. Muitos começam treinando por um desejo genuíno, investindo energia na experiência do esporte em si. Mas, em algum momento, essa energia parece retornar para o próprio eu de maneira inflada. O esporte deixa de ser uma prática e se torna um espelho: a identidade passa a depender da performance. O treino não é mais apenas um treino, mas um reflexo do caráter, da disciplina, da força mental.


E, no meio disso, as redes sociais intensificam ainda mais essa dinâmica. Não basta treinar, é preciso mostrar que se treina. Não basta fazer um Ironman, é preciso que todo mundo saiba que você fez um Ironman. O triatlo, assim como tantos outros esportes de resistência, se torna menos sobre sentir a essência e mais sobre fazer provas - provar ao mundo o quão "foda" você é.


Diante de tudo isso, me pego pensando sobre o que realmente significa gostar de um esporte. Desde que comecei no triatlo, minha maior preocupação nunca foi o tempo de prova, mas a experiência do percurso. Ainda que tenha disputado provas longas e exigentes, nunca fiz isso porque "precisava" me desafiar para provar algo para alguém. Fiz porque quis. Porque fazia sentido para mim. Mas quantas pessoas podem dizer o mesmo? Quando vejo alguém se inscrevendo para um Ironman sem nunca ter feito uma prova menor, sem sequer saber se gosta de nadar, pedalar e correr, me pergunto: é desejo ou é só um reflexo do que o mundo espera?


No meio dessa sociedade que exige resultados o tempo todo, o verdadeiro desafio talvez seja outro: treinar olhando para dentro. O triatlo, assim como qualquer esporte, pode ser um espaço de prazer, de autoconhecimento, de liberdade. Mas, para isso, é preciso primeiro se perguntar: eu realmente quero isso? Se a resposta for genuína, vá em frente. Mas se for apenas um movimento automático, mais uma meta para ser riscada da lista, talvez seja hora de repensar. Porque o triatlo é longo, mas a vida também. E saber aproveitar o percurso pode ser a sua maior vitória.


 
 
 

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    ©2021 por Paula Figueira Psicanalista e Psicóloga Esportiva. Orgulhosamente criado com Wix.com

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