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Toda dor pode ser suportada se por ela puder ser contada uma história.


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Sempre fui muito prudente e cautelosa quando subo na minha bike, seja em treinos ou competições. Quem pedala comigo sabe que chego a ser “chata” e sigo à risca as regras de trânsito, prezando pela segurança de todos ao meu redor. Mas, ainda assim, recentemente virei estatística e fui vítima de um acidente.


Felizmente, saí sem ferimentos graves, mas os danos materiais foram significativos, e o susto foi enorme. É a primeira vez que algo assim acontece comigo em 10 anos pedalando, e espero, do fundo do coração, que seja a única. Enquanto tento lidar com os efeitos desse evento, me pergunto: será que ainda não ficou claro que ciclistas também fazem parte do trânsito?


O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) é claro:


  • Art. 29, §2º: Veículos maiores são responsáveis pela proteção dos menores e mais vulneráveis, como ciclistas e pedestres.

  • Art. 201: Motoristas devem manter a distância mínima de 1,5 metro ao ultrapassar bicicletas.

  • Art. 58: Ciclistas têm permissão para trafegar no acostamento de rodovias, e isso deve ser respeitado.


Embora tenha saído fisicamente ilesa, o impacto emocional do acidente é difícil de ignorar. Quando eventos como esse acontecem, não é raro surgirem reações que vão além do susto inicial. Sensações de insegurança, flashbacks e ansiedade ao voltar a pedalar podem ser sinais de algo mais profundo: o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), uma resposta psicológica a eventos que colocam em risco nossa segurança ou vida. Mesmo quando não há ferimentos graves, o medo intenso e a sensação de desamparo podem deixar marcas psíquicas significativas.


No caso de ciclistas, essas marcas podem incluir:


  • Medo de voltar ao local do acidente.

  • Ansiedade ao ouvir sons relacionados ao trânsito.

  • Flashbacks do momento da colisão.

  • Evitação de situações similares, como pedalar até mesmo em locais supostamente seguros como ciclovias.


Esses sintomas, muitas vezes, não são reconhecidos como parte de um quadro traumático, mas merecem atenção e cuidado. Sigmund Freud estudou profundamente o impacto de eventos traumáticos no psiquismo humano. Ele explicou que o trauma ocorre quando o aparelho psíquico é incapaz de processar a intensidade emocional de um evento, deixando uma “ferida” inconsciente que se manifesta como sintomas.


Freud também explorou as neuroses de guerra, observando soldados que retornavam do combate com pesadelos, flashbacks e comportamentos de evitação. Esses sintomas são semelhantes aos que ciclistas podem experimentar após um acidente: o trauma psíquico não está ligado apenas à gravidade do evento, mas à forma como ele é vivenciado subjetivamente.


Além disso, Freud descreveu a compulsão à repetição, um mecanismo pelo qual a mente revive aspectos do trauma. Embora pareça contraditório, essa repetição, como ter flashbacks ou retornar ao local do acidente, é uma tentativa inconsciente do psiquismo de “dominar” o evento traumático. Segundo Freud, essa repetição está ligada ao esforço do aparelho psíquico de “reparar” e assim encontrar um sentido simbólico para ele.


Mas será que é pedir muito que os motoristas respeitem a distância mínima de 1,5 metro ao ultrapassar uma bicicleta? Essa regra existe para evitar exatamente o que aconteceu comigo e com tantos outros ciclistas, muitas vezes em proporções muito mais graves.


Não é apenas questão de “dar um espacinho” ou de “achar que vai dar tempo”. É uma questão de segurança e de vida. Nós ciclistas “de roupa apertadinha” sabemos que o trânsito não é só sobre nós, que dividimos o espaço com veículos maiores. Mas será que os motoristas entendem que também precisam fazer sua parte?


O trânsito deveria ser um espaço de convivência, e não de disputa. Cada ultrapassagem cuidadosa, cada metro de distância respeitado pode evitar não só danos materiais, mas salvar vidas. Quem está sobre duas rodas tem o mesmo direito de chegar em segurança ao seu destino que quem está atrás de um volante.


Freud nos ensina que o trauma surge do desamparo, e, no trânsito, o ciclista muitas vezes se sente assim: vulnerável e impotente. Não é apenas uma questão de respeito às leis, mas de empatia e cuidado com o próximo. Será que é tão difícil enxergar o ciclista como um ser humano com família, sonhos e uma vida pela frente?


Enquanto elaboro sobre o que aconteceu, penso em como o trauma não precisa ser uma sentença. Freud acreditava que a cura passa pela possibilidade de simbolizar e elaborar o evento traumático. Isso pode incluir falar sobre o acidente com os amigos, família ou até mesmo nas redes como faço ao escrever esse texto, retomar a atividade gradualmente e, se necessário, buscar ajuda profissional. "Toda dor pode ser suportada se por ela puder ser contada uma história", já dizia a filósofa Hannah Arendt.


Mas a superação individual não isenta a responsabilidade coletiva. Como sociedade, precisamos repensar como enxergamos o trânsito e os ciclistas. Se queremos evitar que traumas como o meu e de muitos outros se repitam, é preciso que todos — motoristas, ciclistas e pedestres — entendam o trânsito como um espaço compartilhado, onde o cuidado com o outro deve vir em primeiro lugar.


Afinal, o que é mais importante: sua pressa ou a vida de alguém?


 
 
 

2 comentários


silmaira
18 de dez. de 2024

"Toda dor pode ser suportada se por ela puder ser contada uma história"


E esse texto deveria ser muito compartilhado.

Vejo inclusive, transportes públicos fazendo questão de passar muito próximo do ciclista ou do corredor, somente pq ‘tem uma ciclovia ali, ele deveria estar lá’, e é claro que esse, não tem conhecimento algum do que é o esporte, a falta de informação os tornam ignorantes, só que essa ignorância tbm pode ser mudada, desde que tenham acesso as instrucoes, as regras, o incentivo ao esporte e por aí vai!

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Clovis Figueira
Clovis Figueira
17 de dez. de 2024

Um texto importante que atrai mais consciência para aqueles com quem compartilhamos espaço mas rodovias. Não aceitam compartilhar, e correm para disputar. Ignoram a mais elementar lei da física que assim determina: dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo e na mesma dimensão. Parabéns pelo excelente trabalho.

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    ©2021 por Paula Figueira Psicanalista e Psicóloga Esportiva CRP-ES 16/1594

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