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Uma psicanálise que não teme encarar novos desafios


No cenário esportivo, a psicologia cognitivo-comportamental (TCC) é frequentemente vista como a abordagem mais adequada para tratar questões como concentração, motivação e ansiedade. Essa ênfase no desempenho e nas habilidades cognitivas faz com que a psicanálise pareça distante desse universo. No entanto, essa distância pode ser interpretada como uma oportunidade para a psicanálise se aventurar em novas áreas, oferecendo uma perspectiva única e uma outra forma de escuta para os atletas. Essa é uma proposta de uma psicanálise que não teme encarar novos desafios, explorando o universo esportivo com uma outra modalidade de escuta.


Minha relação com o esporte começou desde cedo, incentivada pelos meus pais, ambos paraquedistas, que sempre me encorajaram a praticar atividades físicas. Porém, ao contrário deles, escolhi me dedicar aos esportes terrestres e, desde 2014, adotei o triatlo como meu estilo de vida. Essa vivência esportiva me fez questionar sobre como a psicanálise poderia se integrar ao ambiente esportivo e, mais ainda, o que o esporte poderia ensinar aos psicanalistas.


A literatura psicanalítica sobre esportes de alto rendimento ainda é escassa, o que pode refletir um distanciamento histórico entre a psicanálise e o esporte. Contudo, existem trabalhos pioneiros que buscam preencher essa lacuna. Entre eles, destaco o livro "Sport Psychanalyse et Science", de Brousse, Labridy, Terrisse e Sauret, que, embora ainda não traduzido para o português, aborda aspectos como desempenho e laço social à luz da psicanálise. No Brasil, estudos como os de Fernanda de Aragão e Ramirez, além das dissertações de Mariana Hollweg Dias e do livro "Mal-estar no esporte: um olhar psicanalítico", escrito por Fábio Menezes dos Anjos, têm sido fundamentais para guiar essa exploração.


Esses trabalhos nos mostram que o esporte, especialmente na modalidade profissional, está profundamente inserido na lógica capitalista, que valoriza a superação, a vitória e o sucesso como principais objetivos. Essa cultura do espetáculo e do heroísmo cria um ambiente ideal para a manifestação de uma lógica perversa e sem limite, onde o "tudo é possível" se tornou um imperativo. No entanto, essa busca incessante pela perfeição não é sem consequências para a saúde mental de quem está inserido no contexto esportivo.



Nos últimos anos, especialmente durante os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 e Paris 2024, a saúde mental dos atletas ganhou mais visibilidade na mídia. Atletas de diversas modalidades passaram a falar abertamente sobre suas lutas pessoais, expondo o desgaste emocional que enfrentam. Casos como o de Simone Biles, que desistiu de competir na final por equipes devido a uma condição chamada "twisties", e Naomi Osaka, que se afastou de competições importantes para cuidar de sua saúde mental, são exemplos poderosos de como a pressão por resultados pode impactar profundamente a vida dos atletas.


Documentários como "Simone Biles: Rising" e "O Peso do Ouro", produzido por Michael Phelps, revelam o lado sombrio do sucesso esportivo. Essas obras não só destacam as conquistas, mas também expõem as lutas internas que muitos atletas enfrentam quando as luzes da competição se apagam. Embora alcancem a glória olímpica, muitos enfrentam problemas de saúde mental com crises de identidade, depressão e ansiedade, ao perceberem que a vida pós-competição pode ser desoladora e vazia.


Um outro exemplo notável de espaço para essa expressão é a plataforma The Players Tribune, onde atletas compartilham suas histórias diretamente com o público, sem a intermediação da mídia tradicional. O nadador brasileiro Bruno Fratus, medalhista de bronze nos Jogos Olímpicos de Tóquio, usou a plataforma para abrir o jogo sobre sua decisão de não competir em Paris 2024. Em seu testemunho, Fratus falou sobre a necessidade de "um tempo para respirar", revelando as pressões psicológicas que o levaram a tomar essa decisão. Seu relato é um lembrete poderoso de que, por trás dos feitos atléticos, há seres humanos que enfrentam suas próprias batalhas internas. Leia o depoimento de Bruno Fratus aqui.


Essas histórias nos convocam a reconhecer que, antes do atleta, existe um sujeito com desejos, medos e expectativas que muitas vezes são silenciados em prol do alto rendimento. A psicanálise, com sua ética, pode oferecer uma escuta diferenciada, focada no sujeito por trás da imagem idealizada do atleta. Em um ambiente onde o desempenho é tudo, a escuta do atleta como sujeito desejante pode se tornar um espaço onde possam se expressar e encontrar sua voz. Trata-se de resgatar essa dimensão desejante que, muitas vezes, é deixada de lado no esporte, permitindo que o atleta possa fazer suas próprias escolhas e ser realmente sujeito de sua história, em vez de apenas cumprir as expectativas externas.



O esporte, frequentemente visto como um caminho para a superação e o foco, também carrega uma dimensão de mal-estar que precisa ser reconhecida e abordada. A psicanálise, ao se inserir nesse contexto, não busca substituir outras abordagens, mas fortalecê-las, resgatando a dimensão desejante do atleta, pois é quando o atleta falha na construção da perfeição que algo do sujeito pode ser revelado. Ao reconhecer essa complexidade, por uma psicanálise que não teme encarar novos desafios, pode-se contribuir para uma prática esportiva mais saudável, onde o atleta é escutado para além dos resultados e vitórias. Assim, a psicanálise no esporte se torna um dispositivo poderoso para ajudar os atletas a encontrar equilíbrio e sentido em suas trajetórias, promovendo um ambiente onde a saúde mental é tão valorizada quanto o desempenho físico.




Resumo da apresentação do dia 30/08/24 do seminário "Esporte de alto rendimento e laços sociais na atualidade" na Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória

1 Comment


Muito bom. Texto claro ,esclarecedor e que ainda me trouxe bibliografia e filmes pra me aprofundar no tema. 👏👏👏👏👏👏👍

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    ©2021 por Paula Figueira Psicanalista e Psicóloga Esportiva. Orgulhosamente criado com Wix.com

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